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Itapecuru: o rio da vida maranhense e a sua múltipla poética história e possível tragédia

Henrique Borralho
Universidade Estadual do Maranhão, Brasil

Pergaminho

Academia Itapecuruense De Ciências, Letras E Artes, Brasil

ISSN-e: 2764-3522

Periodicidade: Semestral

vol. 1, núm. 1, 2021

casademarianaluz@gmail.com



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Resumo: Este artigo, Jornalismo e literatura: o factual é o ficcional, inicialmente uma conferência digital para a 3º FLIM, a Feira Literária de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, em 9 de dezembro de 2020, discute a sociedade na condição pós-moderna, e conclui que a ficcionalidade atravessa tanto o jornalismo quanto a ficção, uma vez que hoje se rompeu a diferença metafísica dicotômica entre a verdade dos fatos (jornalismo) e o imaginário da ficção (literatura). Ambas as formas estão embricadas na hibridização e na lógica inclusiva e pós-aristotélica do suplemento (Derrida), que caracterizam o movimento antimetafísico pós-moderno ou desconstrutivismo.

Palavras-chave: Jornalismo, Literatura, Ficção, Pós-moderno, Antimetafísica.

Abstract: This article, Journalism and literature: the factual is the fictional, was initially a digital lecture for the 3rd FLIM, the Literary Fair of Itapecuru-Mirim, in Maranhão State, Brazil, on 9 December 2020. It discusses post-modern society and concludes that fictionality is common to both journalism and literature. The metaphysical dichotomy between fact (journalism) and fictionality (literature) has been disrupted. Both forms are intertwined in hybridization and in the inclusive post-Aristotelian logic of the supplement (Derrida) that characterize the antimetaphysical post-modern or deconstruction movement.

Keywords: Journalism, Literature, Fiction, Post-modern, Antimetaphysics..

ITAPECURU: O RIO DA VIDA MARANHENSE E A SUA MÚLTIPLA POÉTICA HISTÓRIA E POSSÍVEL TRAGÉDIA

ResumoEste artigo, Jornalismo e literatura: o factual éo ficcional, inicialmente uma conferência digital para a 3º FLIM, a Feira Literária de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, em 9 de dezembro de 2020, discute a sociedade na condição pós-moderna, e conclui que a ficcionalidade atravessa tanto o jornalismo quanto a ficção, uma vez que hoje se rompeu a diferença metafísica dicotômica entre a verdade dos fatos (jornalismo) e o imaginário da ficção (literatura). Ambas as formas estão embricadas na hibridização e na lógica inclusiva e pós-aristotélica do suplemento (Derrida), que caracterizam o movimento antimetafísico pós-moderno ou desconstrutivismo.Palavras-chaves: Jornalismo; Literatura; Ficção; Pós-moderno; Antimetafísica.ABSTRACTThis article, Journalism and literature: the factual is the fictional, was initially a digital lecture for the 3rd FLIM, the Literary Fair of Itapecuru-Mirim, in Maranhão State, Brazil, on 9 December 2020. It discusses post-modern society and concludes that fictionality is common to both journalism and literature. The metaphysical dichotomy between fact (journalism) and fictionality (literature) has been disrupted. Both forms are intertwined in hybridization and in the inclusive post-Aristotelian logic of the supplement (Derrida) that characterize the antimetaphysical post-modern or deconstruction movement.Keywords: Journalism; Literature; Fiction; Post-modern; Antimetaphysics.1. IntroduçãoO objetivo desse texto é demonstrar que, no período pós-moderno, torna-se impossível distinguir o factual jornalístico do que é ficcional e literário.[1] Hoje vivemos em meio a uma constante crise, com suas intrigas, fake news, espionagem, intrigas políticas, denúncias, violência, jurisdicialização de tudo, teorias conspiracionais, negacionistas, invasão de privacidade. Essa crise deriva, na visão de uns, da decadência de hábitos e costumes; mas, na visão de outros, da possibilidade de desmascaramento de falsidades sociais. A crítica da metafísica, anunciada na década de 1970, pelo pós-moderno ou desconstrutivismo, só agora está sendo difundida e praticada na vida social, e não mais apenas como teoria. Suas raízes remontam à filosofia antimetafísica, proposta por Nietzsche, no fim do século XIX, e foram bem consolidadas por Heidegger, no século passado.O pós-moderno veio desconstruir as grandes verdades e as grandes narrativas, baseadas na filosofia transcendental metafísica, que funcionavam como um sólido conjunto de crenças e fundamentação dos discursos. O enciclopedismo humanista do período da Ilustração consolidou, no século XVIII, verdades e noções fixas e universais sobre o social e as mentalidades, que sedimentaram o eurocentrismo e seu pensamento hegemônico como parâmetro de juízo.Já o pós-moderno argumenta, ao contrário, que o discurso está sempre aberto a novas interpretações, não havendo uma verdade unívoca, e sim múltiplas leituras de uma questão, podendo estas serem reais ou imaginárias. Os estudos de intertextualidade mostraram que tudo na sociedade é imbricado em grandes redes de sentido intertextuais, intersemióticas e interculturais, não havendo um parâmetro definidor dado por algum povo, país, raça, ou gênero, como ocorria no século XVIII ilustrado, em que se tinha uma escala de valores europeia imposta às colônias, por exemplo. Até o pós-moderno, os critérios de belo e bom eram determinados pela filosofia transcendental de Hegel, e os gêneros literários ainda obedeciam à Poética de Aristóteles. Atualmente, os gêneros se misturam, bem como os gêneros da sexualidade, que se imbricam e se intercambiam. Dessa forma, não é mais possível separar o ficcional (a literatura) do factual (o jornalismo).Na prática, a desconstrução dos valores metafísicos, construídos pela tradição filosófica desde Platão, tais como o belo, a verdade, a ética, são diariamente contraditados na sociedade, que, por um lado, aponta novas visões de mundo, ou paradigmas provisórios de juízos de valor, mas, por outro, soçobra numa profunda crise de valores, os quais ela é incapaz de impor, na cultura tradicional. O pós-moderno mostrou que grande parte dos critérios para a sociedade escolher o que é belo e bom era sobredeterminado pelas classes sociais e povos privilegiados, que impuseram sua norma e preconceitos como forma de manterem seu poder – e não por algum valor estético autêntico. A ideia da arte pela arte, vigente até o Simbolismo, pregando a arte pura, na estética, o nacionalismo do Estado, ou determinados valores e comportamentos, nada tinham de abstrato e filosófico, enfim. Apenas atendiam aos interesses de classe e de dominação pelos povos hegemônicos. Tudo isso se rompeu, na década de 1970, com o pós-moderno, difundindo-se na sociedade após a década de 1990.Junto com essa crise antimetafísica e a crítica pós-moderna aos valores hegemônicos, configurou-se, concomitantemente, uma crise de valores na sociedade. Apenas a jurisdicialização consegue impor alguma ordem, uma vez que a hibridização e a relativização de todos os valores impedem uma solução única aos problemas, como ocorria na escala de valores e critérios rígida que antes servia de parâmetro.Os valores passam a ser híbridos, multifários, flexíveis, não mais unívocos ou dicotômicos (ou A ou B, nunca C, como pregava a lógica aristotélica). Assim, eles possibilitam o surgimento de aspectos reprimidos, como o preconceito contra mulheres, homossexuais, africanos, indígenas ou outros povos, pessoas e até animais, que eram subestimados, escravizados ou maltratados. Em lugar da história tradicional, surge a Nova História, que vem destacar aspectos antes ignorados ou menosprezados na sociedade.A nova históriaO movimento da Nova História surgiu com o grupo da revista dos Anais, na França, em 1929, mas teve grandes desdobramentos no período pós-moderno, na década de 1970. Tornou-se conhecido como Nova História, história dos oprimidos, dos vencidos, ou história das mentalidades. Foi capitaneado por Georges Duby, Jacques Le Goff e Fernand Braudel. Ele ressalta os aspectos reprimidos da sociedade e até da linguagem, em geral impostos pelas classes hegemônicas a gêneros e classes subalternos. Exige que se dê voz aos grupos que não podem se expressar, como mulheres, africanos, indígenas e minorias sexuais, e que se deem direitos até a crianças e a animais, por exemplo. A história dos vencidos se opõe à história tradicional, na medida em que esta se ocupava com os heróis e a vitória de reis e exércitos e ignorava o povo. Já a história dos vencidos ou das mentalidades preocupa-se com o cotidiano, as formas de comer, vestir, viver, as instituições e a cultura oral dos povos, bastante menosprezadas pela história dos vencedores, narradas pelas elites. (Ver Norbert Elias, 1990).Esse novo tipo de história quer desrecalcar os conteúdos abafados pela ética, filosofia, estética e sociologia eurocêntricas. Hayden White afirma, em Metahistória, a imaginação histórica na Europa do século XIX (1971), com base em Marx, que ela se propõe a abolir todas as causas ocultas, morais ou teológicas para explicar a sociedade. Isso de forma semelhante a Freud, que mostrou a importância das motivações inconscientes nas ações dos indivíduos. Desse modo, realizou-se a crítica do pensamento metafísico transcendental do Ocidente, na medida em que se passou a pesquisar o que está oculto e reprimido sob a camada do discurso e do senso comum.Nessa obra, Hayden White afirma que a história deixou de ser considerada uma ciência, baseada numa comprovação, e passou a ser vista como uma narrativa como tantas outras, aberta à interpretação e influenciada pela ideologia do narrador. Não possui o conteúdo de verdade que a história tradicional impunha, como se apresentasse um relato concreto, unívoco, científico e principalmente “verídico” dos fatos. Do mesmo modo, também os textos informativos, objetivos, do jornalismo, passaram por uma transformação, não mais sendo vistos como crônicas que espelhem o real histórico atual, mas sim como narrativas interpretativas dos fatos, e, nesse sentido, equiparam-se à literatura.Segundo esse autor, qualquer narrativa objetiva e denotativa, como a histórica (bem como a jornalística), utiliza os mesmos recursos retóricos, os mesmos tropos ou figuras da linguagem que a literatura, quais sejam: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia (White, Metahistory, 1973, p. 31, 34-38). Desse modo, diluem-se as fronteiras entre prosa jornalística e prosa de ficção, desaparece a referencialidade da prosa, marcada pela famosa distinção entre metáfora (conotação) e metonímia (prosa), nos dois eixos linguísticos do discurso, apontada por Roman Jakobson em Linguística e comunicação(1970) – aliás, já criticada por Jacques Lacan, devido a sua dicotomia. Ambas as figuras de retórica são utilizadas no jornalismo e na literatura. Ambos usam a interpretação ideológica e pessoal para expressarem-se. O jornalismo utiliza a “fala descompromissada com a verdade”, a criação, as imagens retóricas, as hipérboles, do mesmo modo que o escritor literário.É claro que temos um caso peculiar na poesia. Apesar de ela utilizar os mesmos recursos que o jornalismo e a prosa de ficção, do ponto de vista linguístico, ela adota um formato diferente, visando a um efeito estético de impacto, que pode ser o lírico, o épico, o cômico e assim sucessivamente. Na Renascença, era comum que receitas médicas fossem recitadas ou anotadas em versos, para facilitar sua memorização, entre populações basicamente analfabetas.Enfim, todos os recursos que fazem parte da expressão literária integram, igualmente, o discurso jornalístico e até mesmo as demais disciplinas científicas, sendo que a ciência exata procura apresentar conclusões definitivas, unívocas, a cada vez, pois lida com questões práticas, como medicamentos, intervenções cirúrgicas, cálculos, voos espaciais ou análises de máquinas, que são assuntos urgentes e perigosos, sem possibilidade de muita especulação. Mesmo assim, tais conclusões são, rapidamente, seguidas por novos artigos, com novas conclusões, que também se colocam como unívocas e definitivas, apenas aparentemente.A imbricação (ou contaminação, como querem alguns tradicionalistas) do jornalismo com o ficcional ocorre ainda mais intensamente na comunicação nas redes sociais do século XXI, com suas anedotas, memes, mensagens, fake news, sites ou blogs, que têm características populares e até artísticas, e principalmente ideológicas. O noticiário traz, então, notícias que são híbridas de arte e literatura, tecendo redes de inter-relações com elas, enquanto o texto literário ou o filme também podem ser documentais, e terem compromisso com a “verdade” dos fatos. Ao mesmo tempo, todos sabemos que essa “verdade” se constitui de enunciações interpretativas, que podem ser ou isto, ou aquilo, ou ambos.O Movimento Pós-modernoO movimento pós-moderno surge nas décadas de 1970, mas difunde-se mais intensamente pela sociedade como um todo por volta de 1990, com a difusão de celulares e microcomputadores pessoais. Essa denominação lhe é dada por Jean-François Lyotard, em A condição pós-moderna (1979). Seus expoentes foram Jacques Derrida, o próprio Lyotard, Jean Baudrillard, Paul de Man e Geoffrey Hartman. Sua proposta é a desconstrução do movimento metafísico-transcendental, construído pelo enciclopedismo francês da Ilustração e pelo transcendentalismo alemão do século XVIII, com Kant, Hegel, Herder e Schelling. O objetivo do pós-moderno é a crítica dos pressupostos de verdade e os valores que faziam parte das grandes narrativas da metafísica, que serviam de fundamento da nossa cultura greco-judaico-cristã-ocidental, na expressão de Jacques Derrida.Essa crítica à metafísica inicia-se com Nietzsche, em especial na obra A genealogia da moral (1887), e continua, com a crítica à linguagem através da hermenêutica, com Martin Heidegger, que, no século XX, empregou o processo de “desconstrução” da linguagem, praticando a analogia semântica, não propriamente etimológica, mas antes paronomástica, com o objetivo de evidenciar o sentido intertextual da língua e, consequentemente, do pensamento, que é maleável, flexível. Essa postura de questionamento filosófico estendeu-se, aos poucos, a toda a sociedade, que ao final do século XX passou a reavaliar valores, papéis sexuais, identidades, centro e periferia, formas estéticas e poder.Anulam-se, assim, os sustentáculos metafísicos da crença nas grandes narrativas do passado, como as ligadas à verdade, teologia, moral, o bem, o belo, a finalidade sem fim na arte, a história, a religião e tantas dicotomias que serviam de pressupostos para o sistema de crenças do Ocidente. O fundamento desses pressupostos metafísicos é o da lógica aristotélica e seu princípio do terceiro excluído, ou seja, se Aé verdade, então não pode ser nem B nem C. Essa lógica da exclusão, ou do terceiro excluído propõe, como critério de juízo, ou o verdadeiro ou o falso. Já na década de 1970, Derrida propôs uma mudança no conceito, com a lógica do suplemento, em que se podem acrescentar várias interpretações como plausíveis, não exclusivas, e em que se contesta o critério de verdade. Essa nova lógica possibilita diversas leituras paralelas, que se querem como versões, narrativas, hipóteses, não como verdade absoluta.A nova lógica do suplemento, ao possibilitar alternativas, acaba levando ao aleatório, ao hipotético, à incerteza, na medida em que corresponde à teoria da relatividade da física de Einstein. Ela explica nossa época, tão multifária, que sentimos como caótica, e tão avessa a uma verdade absoluta. Cada novo discurso constitui uma narrativa passível de diferentes interpretações.Isso reflete o nosso momento, em que se delineia, cada vez mais, a realidade virtual, que invade várias áreas do saber. Na literatura, os hiperlinks ainda não se firmaram como forma de contar uma história com vários (des)enredos, mas isso já é possível. A noção de vários desfechos e leitura já fora anunciada, há muito tempo, por Julio Cortázar, em O jogo da amarelinha (Rayuela, 1963).Nas redes de sentido, verdadeiramente intertextuais, intersemióticas e interculturais que transitam na comunicação atual, aumentada desde a metade do século XX, com a difusão de novos meios de comunicação de massa, os gêneros se misturam, tanto no plano do literário, quanto no da sexualidade. Não é mais possível separar o ficcional (a literatura) do factual (o jornalismo). Esse entrelaçamento dos discursos em uma ampla e complexa rede de sentidos já fora definido, do ponto de vista da linguagem escrita, por Julia Kristeva, em Séméiotiké (1969). Para Kristeva, desde o século XX tornou-se impossível saber a origem de ideias, já que “tudo está em tudo”, e passou-se a ter infinitas formas e fontes de receber-se uma informação. Então, ao final do século XX, com a difusão da Internet, nos celulares e nos computadores domésticos, tais imbricações se tornaram ainda mais complexas, rechaçando o plano meramente linear da escrita, para ocupar todas as relações intersemióticas da comunicação, numa rede virtual infinita, de signos multifários, de tal forma que é quase impossível separar conteúdos, modos e gêneros, de forma linear.A comunicação digital tornou-se imediata e capaz de alcançar grandes distâncias, e a divulgação de temas factuais, próprias do jornalismo, obrigando ao fechamento de muitos jornais, revistas, e outras formas de comunicação linear, no formato impresso em papel.O canadense McLuhan previra uma aldeia global, mas pensara num processo de união e comunicação dos povos, imaginando que toda a terra falaria a sua língua, o Inglês, talvez por telefone. No entanto, não imaginou que pudessem surgir os atuais meios de comunicação imediata, e nem que eles levassem a um tal embate entre ideologias, línguas, políticas e costumes e entre verdade e falsidade – numa constante guerra de poder e de hegemonia da palavra. A Internet deflagra acusações, a falta de ética, um vale-tudo de mentiras, as fakes news, e um choque de mentalidades, ideologias e religiões, o uso de uma linguagem violenta e de oposições políticas radicais, sem discussão nem mediação. Uma verdadeira guerra comunicacional.A crise da literaturaInfelizmente, nesse panorama globalizado, a literatura exerce um papel muito secundário e pouco influente na sociedade, ou, pelo menos, bem aquém da importância da mídia jornalística na vida da média das pessoas. Ela sofre uma crise em que seu poder é usurpado por mídias que oferecem mais movimento, cor, rapidez e por vezes a facilidade da oralidade, e até a presentificação da realidade virtual, contra as quais só oferece letras sobre papel, na maioria dos casos.A linguagem escrita, da literatura, recuou para um reduto secundário nesse universo que vende coisas e informa, bem mais poderoso e atraente que a literatura, feita só de letras no papel. Mais que isso, a língua tem de obedecer à linearidade do discurso, como nos mostrou Ferdinand de Saussure, no Curso de linguística geral (1971, póstumo), apondo um signo após o outro. Já a imagem é simultânea, movimento, texto, música. A mídia falada pode colocar novos recursos visuais na comunicação. A literatura implica na leitura solitária, silenciosa, e não faz mais parte da vida cotidiana da maioria das pessoas – o que pouco mudou em relação ao passado, quando havia mais analfabetismo, como ocorria na Idade Média, por exemplo. Entretanto, a alfabetização (precária, no Brasil) não redundou num aumento proporcional de intelectuais leitores. Esse fato derrubou o sonho enciclopedista do saber universal, alimentado principalmente por Rousseau e Diderot, com a ideia de um conhecimento universal. Abriram-se escolas, universidades... mas... continuam as diferenças de classe, de acesso ao saber e até mesmo de interesse pela arte erudita, até por aqueles que poderiam ter acesso a ela. Não há nem mesmo um interesse maior pelo que se chama de literatura científica, da bibliografia relativa a cada disciplina entre as grandes massas. O fato é que a literatura não pertence ao domínio da vida prática, numa sociedade hedonista, que só se interessa por consumo e lucro. Pelo menos no Brasil, principalmente a ficção está bem distante das classes pouco privilegiadas – mas este fenômeno ocorre, em maior ou menor proporção, no mundo todo. A literatura vem perdendo muito do seu prestígio para o cinema, o vídeo, a fotografia, as redes sociais, e em breve para a realidade virtual. Um tipo de discurso imediato, e, mesmo que não traga a profundidade de um livro, que será recebido por outra área do cérebro, é a mídia visual que de fato domina o panorama hoje. Mas, para tal, cria toda forma de ficção, lançando mão de recursos enganosos e atraentes. Parece que a história do livro literário chegou a uma encruzilhada. Passou do tijolo (Suméria) para o pergaminho (Grécia), dali para o papel (Renascimento) e hoje para o veículo digital (século XX), mas até agora não superou a própria literariedade e abstração. Agora tudo passa pelo digital. Mas, ainda assim, com todas as facilidades, o número de leitores não aumenta proporcionalmente ao aumento da população mundial.Já em Elementos da semiologia (1964), Roland Barthes previra que todos os tipos de linguagem – do cinema, da pintura, da fotografia – seriam traduzidos para a linguagem verbal, pois essa é nossa forma de expressão. Não falamos por imagens visuais, oníricas ou mentais, mas com o uso de palavras. No entanto, esse processo é automático e inconsciente, e não nos apercebemos de que traduzimos tudo em linguagem verbal. O que prevalece, na vida prática, é a linguagem da comunicação de massa, da propaganda e do jornalismo: o mundo visto de forma objetiva, em que a linguagem se constitui ou remete para as imagens, seja a fotografia, o vídeo ou o cinema. Valoriza-se o sentido prático: comprar, vender, informar, através de e-mails, zaps, redes sociais, com fotos e vídeos, que permeiam todos os minutos de nossas vidas. Essa linguagem falseadora, ilusória, apela ao lado hedonista e utilitário da sociedade atual, e não só no capitalismo.Salões literários e redes sociais hojeOs salões deixaram de fazer parte dos encontros sociais, e a literatura não é mais tema de conversa. Hoje, nem mesmo as livrarias congregam leitores, como ocorria no século XX, mas os bares e as “salas” virtuais de chat, e a conversa em geral não inclui a literatura, mas se volta para assuntos práticos: finanças, comércio, informática, aquisição de bens, sociologia, hedonismo, ecologia, economia, gastronomia, saúde. Esse é o universo usual das pessoas.Nos salões do século XVIII, músicos se apresentavam, como Mozart, havia balé, recitações de poemas e discussões filosóficas. Muito dessa vida social é refletida por Goethe, na sua autobiografia Poesia e verdade (1811-1833). Naquele ambiente e época, a pessoa que queria frequentar os salões cultos e de nobres tinha de mostrar cultura geral, enunciar opiniões cultas e discutir o que havia lido dentre as obras dos escritores e filósofos mais significativos do seu tempo. Ali se conseguiam empregos, faziam-se contatos, alianças, casamentos. Hoje, dificilmente a literatura ou a arte serão temas de uma entrevista de Recursos humanos para se obter um emprego – exceto, evidentemente, num concurso de Letras.A literatura ainda era o principal tema nos salões da elite real europeia, até o Romantismo, e o livro era um degrau para ascender na sociedade. Como mostrei em Segredos públicos: os blogs de mulheres no Brasil (2007, p. 67-99), a prática feminina de escrita de diários, até a primeira metade do século XX, era estimulada até pela Igreja, e servia para, através da aquisição de cultura, para assegurar a ascensão social das donzelas, que os queimavam assim que conseguiam um marido. Pode-se ver a presença dos salões na França ainda até as duas primeiras décadas do século XX, nos saraus da princesa Winnaretta Singer-Polignac, retratados por Marcel Proust, em À procura do tempo perdido (1913-1927, 1ª publ., 1918), que reuniam os principais artistas que viviam em Paris: músicos, escritores, compositores, dançarinos, coreógrafos. Ali se praticava a moda dos “quadros vivos” (tableaux vivants), por influência da fotografia, quando as pessoas se vestiam de modo extravagante para posar, imóveis, em cenas que geralmente copiavam algum quadro.Hoje, a literatura ocupa apenas um nicho social, virou matéria eletiva e especializada, de pós-graduação. Fora das Faculdades de Letras, a literatura se resume a ler poesia em voz alta, em teatros ou academias, tornando o gênero ficcional de narrativo em dramático, teatral, oral, e mais acessível; ou discutir prosa de ficção em círculos do livro. A literatura de grande público que circula por aí são best-sellers, obras feitas após pesquisa de opinião pública e geralmente produzidas em escritórios de criação coletiva. Mas serão os best-sellers, realmente, obras literárias? E a literatura de autoajuda? São paraliteratura, ou deveriam ser classificadas como obras factuais, informativas, próprias do jornalismo e da comunicação de massa?O mundo digital vem acompanhado da perda de referenciais, ou de valores éticos que possam nortear a sociedade como um todo. Diluem-se os valores tradicionais, como família, teologia, filosofia, que serviam de parâmetros desde o Renascimento. Comenta-se até que o empobrecimento atual da linguagem, causada pela necessidade de rapidez, brevidade e praticidade da comunicação, está prejudicando o coeficiente de inteligência de toda a humanidade. E nada se colocou para substituir os valores éticos perdidos. Sem aqueles valores metafísicos, ocorre a desmoralização, a decadência de valores, ideias, o que aproxima a sociedade do caos, da descrença, do ódio e do vale-tudo. Há um excesso de individualismo e hedonismo, de desejo de obter lucros e vantagens pessoais, e a arte fala cada vez mais em apocalipse, em hecatombe ecológica e ambiental, bem como em decadência da sociedade.A perda dos grandes valores do passado, correspondendo às grandes narrativas, como honra, verdade, justiça social, ética, idealismo, religião, família, nacionalismo, acompanha-se da falência das grandes narrativas do humanismo. Há um desencanto, que passa a ser comunicado pelas redes sociais e pelo jornalismo. Esse processo já fora apontado por Gyorgy Lúkacs em O romance histórico (1937), e principalmente em A teoria do romance (1920), quando o autor mostrou que a poesia épica clássica, com seus mitos e heróis, fora, por assim dizer, banalizada, no século XX, quando foi substituída pelo romance de prosa de ficção, baseado num anti-herói, mera figura no plano histórico. Ele não se situa mais no plano mítico da poesia épica, como no caso dos heróis gregos, nem representa mais os valores da nação. Ruiu a construção ideológica do humanismo, que se esboçou desde o Renascimento ocidental, e que serviu de baluarte para nossa sociedade.Cultura de massa, jornalismo e literaturaA literatura, em meio à cultura de massa, sobrevive praticamente como inspiração para roteiros cinematográficos, peças teatrais e estudos especializados. Livros que vendem são os best-sellers, que por vezes se aprofundam num assunto, de forma enciclopédica, ou de forma minuciosa, descritiva, como nos romances de crime. Aproximam-se, portanto, da informação, não sendo obras de criação literária. Assim, são importantes as feiras do livro, que ajudam a divulgar a literatura entre os leitores. Mesmo aí, o interesse maior também é jornalístico, factual, sobre a biografia do escritor, para dessa forma reviver a aura da obra de arte perdida através da idealização do próprio escritor, como mostrou Walter Benjamin em seu famoso ensaio “A obra de arte na época da reprodução técnica”. São aspectos externos à obra literária em si, que, às vezes, nem é lida. Jakobson já mostrou que a arte literária é a mais difícil, por ser abstrata, totalmente mental, à diferença da pintura, que você vê, e da música, que você ouve – pois têm um imediato efeito sensorial. Já na literatura, há apenas letras, signos que nada significam em si, lançados numa superfície. Para ser compreendida, essa comunicação abstrata tem de ser interpretada.No pós-moderno, a hibridização dissolve a fronteira entre os dois gêneros, o factual, do jornalismo, e o ficcional, da literatura. Para definir o que é ficcional e o que é factual, temos de levar em conta o hibridismo das linguagens que caracteriza a vida, hoje.O jornalismo surgiu na Inglaterra industrial, no século XVIII, sob a forma de imprensa escrita. Ian Watt, em O surgimento do romance (1957), comenta como as obras de Charles Dickens e outros autores ingleses tinham seus livros publicados sob a forma de pequenos panfletos, reunindo apenas alguns capítulos, que eram vendidos bem barato e que os operários podiam guardar nos bolsos do uniforme para lerem no trem, a caminho do trabalho das minas de carvão. Imagine-se isso hoje, como seria útil, no Brasil! As igrejas protestantes, sob a influência da hermenêutica, que nasceu da interpretação protestante do texto bíblico, tiveram importante papel de alfabetização, na Inglaterra e na Escócia, ao abrirem escolas de leitura bíblica em cada esquina, onde ensinavam até grego e latim, como no caso do lavrador pobre, Robert Burns, que chegou a ser celebrado como o poeta nacional escocês.É claro que o surgimento da imprensa, no século XVIII, na Inglaterra industrial, carreou para si grande parte desses leitores que se instruíam através dos textos literários. No século XIX, os jornais publicavam crítica de rodapé e seções de folhetim, romances e novelas. Até a segunda metade do século XX, reservavam espaço para suplementos literários e colunas de crítica literária, com ensaios, resenhas ou crônicas. Tudo isso desapareceu, com o inchaço da cultura de massa, e esses textos foram aos poucos substituídos por notícias sobre música popular ou cinema, e hoje nem existem mais. Aparecem algumas resenhas que não passam de releases (resumos divulgados pelas editoras) ou spoilers (resumos dos enredos), consistindo em geral de matérias pagas.No século XX, com as escolas de jornalismo, as notícias tinham um protocolo rígido, tendo de responder, já no primeiro parágrafo, às perguntas: que, quem, onde, quando. Deveriam ter um tom denotativo, objetivo e descritivo. A descrição, segundo Lukács no terceiro volume, Mímesis, da sua Estética(1957), jamais usa o ponto de vista pessoal e a imaginação, que são próprias da narração. A matéria de jornal factual, clássica, jamais poderia infringir a separação entre o eu e o outro e tinha de se ater aos fatos, pois era considerada verídica, o espelho da realidade, não inventada ou criada. Contudo, hoje esse cânone é posto à prova, uma vez que se sabe, pela análise do discurso, que tudo depende do lugar de quem fala, a ênfase ou seleção que a pessoa imprime aos fatos, sua tendência pessoal, ou ideologia. Portanto, o factual é ficcional, e a descrição é sempre acompanhada de narração ou interpretação. O modo descritivo rígido há muito desapareceu no jornalismo oral e escrito, e mais ainda na Internet, onde jornalistas escrevem blogsrepletos de opiniões pessoais, zaps e e-mails, e jornalismo, nas atuais salas de comentaristas, na televisão, é a discussão de forma polêmica, emitindo opiniões acaloradas, sejam do canal, sejam próprias.Nessa nova mimese, misturam-se descrição e narração; ficcional e factual; liberdade de autor com liberdade na transmissão factual do jornalismo. É claro que ambos têm compromisso com o objetivo de sua escrita. O meio é a mensagem – ensinava McLuhan. Não se espera que um jornalista publique um diálogo com marcianos na primeira página de um jornal ou no “Breaking news” na televisão – como na conhecida experiência de Orson Welles, aos 23 anos, quando leu no rádio um trecho da Guerra dos mundos, de H. G. Wells, em 1939, e anunciou a invasão dos marcianos nos Estados Unidos, causando pânico e pavor pelas ruas. Ele introduziu na mídia de notícias um trecho duplamente literário. Já numa obra literária, não há cobrança do autor, quer se incline à imaginação, quer se incline ao documentário. Só se pede dele que seja coerente e obedeça à verossimilhança interna da obra. Na televisão e no rádio, presume-se que o mundo privado, a opinião pessoal, não devem misturar-se ou prevalecer sobre o mundo público. Mas quem obedece a isso hoje, principalmente na Internet? (Ver Lobo, Luiza, Segredos públicos, 2007). As fakes news, ou notícias falsas, são um caso extremo desse fenômeno, quando um presidente da República ou ministro, ou algum cidadão ressentido, resolve divulgar suas opiniões pessoais distorcidas, odientas ou mentirosas, inventando lorotas, mas fingindo estar efetivamente comunicando e informando a comunidade. É um logro. Ele esconde que deseja difundir o caos para obter mais poder, ou oculta uma vingança ou ressentimento.Nas redes sociais, há um relativo ou total anonimato, o que permite às pessoas roubar, enganar, criticar a política, a religião ou a moral, muitas vezes passando adiante seus ódios ou ressentimentos. Elas costumam inventar qualquer coisa, alguns por mera perversão, outros para mostrar a própria esperteza e superioridade, ao conseguir driblar as leis que tentam reprimir seus atos, na Internet. Hoje assistimos à teoria do pós-moderno concretizada na prática social. No entanto, algumas dessas práticas desconstrutivas acabam por se tornar destrutivas, no plano prático, sem nada apresentar de novo em seu lugar.O factual e o ficcionalCom a “condição pós-moderna” (Lyotard), surgida entre os anos 1970 e 1990, misturaram-se dois modos de escrita, a descrição (externa, documental) e a narração (interpretativa, participativa), de acordo com a divisão proposta por Gyorgy Lukács, ao definir mimesis na sua Estética. Em A teoria do romance, o teórico húngaro considera os dois modos excludentes entre si, e compara o uso da narração, numa cena da obra Ana Karenina, do escritor Tolstoi, com uma cena descritiva, no romance Nana, de Émile Zola. Mas dissemos que essa separação não corresponde mais ao que se vê hoje.O ficcional, para a Poética de Aristóteles, sempre foi identificado com a mentira, a invenção. Diz ele: “História é o que foi, poesia é o que poderia ter sido.” Podemos transpor essa dicotomia para o factual e o ficcional, o jornalístico e o literário, numa perspectiva tradicional. Mas, se hoje, na mistura de gêneros, textos, linguagens, tudo é narrativa, então fica impossível distinguir jornalismo, ciência, história, ou seja, a linguagem objetiva, da linguagem da literatura, baseada na criação ou na invenção, o ficcional. O próprio mundo virtual já é fake. Ele falseia a tridimensionalidade, inventa o real através de vídeos, fotos e vídeos que fingem ser o real, mas não o são. Ao final, o mundo virtual termina por nos fazer duvidar da veracidade do que nos é transmitido. A comunicação de massa penetra em todas as linguagens, propõe leituras de tudo o que está a nossa volta, se imiscui em nossa privacidade, chegando a nos sugerir, na Internet, o que poderíamos ou desejaríamos comprar. Pela repetição, que é um recurso retórico, acaba nos induzindo a comprar o que talvez nem quiséssemos. O lado psicológico e subjetivo da literatura é incorporado no jornalismo e na propaganda. Theodor Adorno, da escola crítica ou de Frankfurt, chegou a declarar, em obra da década de 1940, que a comunicação de massa extinguiria a arte. Ele não aceitava que o teatro ou a música erudita tocada ao vivo fossem gravados em discos, repercutidos no rádio ou no cinema, dizendo que a máquina mecanizaria o humano, que já não pensaria por si.Já Clarice Lispector, cujo centenário de nascimento comemoramos no dia 10 de dezembro de 2020, escreve algo semelhante, na crônica “A máquina está crescendo”, do dia 4 de março de 1970, na sua coluna de sábado no Jornal do Brasil:“A máquina está crescendo. Está enorme. A ponto de que talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como perfeição de ser criado, só existirá a máquina. Deus criou um problema para si próprio. Ele terminará destruindo a máquina e recomeçando pela ignorância do homem diante da maçã. Ou o homem será um triste antepassado da máquina; melhor, o mistério do Paraíso” (A descoberta do mundo, 1984, p. 420).Clarice, pioneira de nosso feminismo, já percebera a contaminação entre o texto literário e a mecanização trazida pelo jornalismo, e hoje pela Internet. Então, para entender esses temas, vamos apresentar a definição de ficcional e factual de acordo com a narratologia.A proposta da narratologia: um novo paradigmaA narratologia nos apresenta, creio eu, uma definição bem mais eficaz e abrangente para a questão do ficcional e do factual, que hoje é múltipla e complexa. Ela permite superar a dicotomia linear do isso ou aquilo, ou literatura e ficcional, ou jornalismo e factual, e apresenta um conceito bem mais apropriado a uma sociedade híbrida e multifária como a nossa.Segundo Jean-Marie Schaeffer, em The Living Handbook of Narratology (em 19/08/2012, http://www.lhn.uni-hamburg.de/node/56.html. Acesso em 27/10/2020),[2] o ficcional é:“A relação entre narratologia (Meister) e a teoria da ficção foi por muito tempo ignorada, em parte porque a narratologia clássica raramente se preocupava com a questão da diferença entre fato e ficção. A teoria da ficção pretendia ser válida para todas as narrativas, embora, na realidade, os narratólogos clássicos só utilizassem textos ficcionais. Os modelos clássicos utilizados por Genette ([1972], 1980, [1983], 1988) e Stanzel (1964 [1979], 1984), por exemplo, se constituíam em narratologias baseadas exclusivamente em textos de ficção. Foi apenas num estágio posterior que os narratólogos investigaram explicitamente a relação entre técnicas narrativas e a distinção ficcional/factual (Genette [1991], 1993; Cohn, 1999)”.A estrutura da linguagem é a mesma, nos dois tipos de texto, jornalístico e literário, pois ambos utilizam o ato intencional da fala, independentemente de seu gênero literário. Nesse aspecto, a narratologia coincide com o que afirmou Hayden White, na Nova história: os textos sempre usam os mesmos recursos retóricos (mentais?) para se exprimirem.Schaeffer acrescenta: o ficcional é:“um modo retórico fundamental, entendido como um meio para comunicar o que é inventado e, como tal, transgride as fronteiras tanto da ficção quanto da narrativa (…). O ficcional é um conceito autônomo (...), uma invenção explicitamente anunciada na comunicação”.Segundo o ator, o que distingue o factual do ficcional é a intencionalidade explicitada por seu autor, além do contexto da sua comunicação. Em lugar da intencionalidade do texto, algo severamente criticado pela Nova Crítica, uma vez que o texto é autônomo e não depende da intenção que tinha seu autor ao escrevê-lo, propomos que o próprio texto já deve explicitar o que ele quer comunicar, se é uma função factual, ou se é uma função ficcional.Então, hoje, o ficcional e o factual se misturam, sem fronteiras, bastando o texto explicitar se é uma coisa ou outra. O texto tem, por assim dizer, de se legitimar (na expressão de Althusser) na leitura e na aceitação do leitor ou do público. Estamos longe da noção dicotômica entre metonímia (prosa) e metáfora (poesia), os dois eixos distintos da linguagem, que se entrecruzavam, propostos por Roman Jakobson em Linguística e comunicação (1970). Visão prática e balanceada de um mundo ainda visto através das características dualísticas aristotélicas.Já o texto literário ou ficcional tem maior liberdade de mimese, e sua aproximação com o real ou com a verdade não é contestada. Aceitam-se as incoerências ou mentiras, desde que o texto guarde verossimilhança interna em todo o seu decorrer. Numa novela de detetive, não aceitamos que o nome do réu seja alterado de uma página para outra. Mas acreditamos na personagem da lebre louca ou do ovo Humpty-Dumpty (metáfora para um político da época), que fala como gente e cai do muro, porque tudo, no livro Alice no país das maravilhas, assim como noutros, de Lewis Carroll, passa pelo mesmo processo de invenção. E Carroll não nos propõe, em momento algum, um mundo que exista de verdade – exceto quando diz que tudo não passou de um sonho, e que Alice nunca caiu no buraco do coelho falante nem conheceu a rainha de Copas. Afinal, é uma obra do século XIX, e alguma distinção entre sonho e realidade tem de ser mantida – o que não mais acontece nas obras pós-modernas, colocando-nos um problema a mais, como leitores. O da virtualidade, que hoje persegue tanto a literatura quanto o jornalismo. John Barth, Paul Auster e Sérgio Sant’Anna misturam o narrador com a personagem, e Borges utiliza a quarta dimensão, da física de Einstein, para escrever o conto “O jardim das sendas que se bifurcam”, no qual a própria personagem atira em si mesma, de uma outra dimensão, de uma outra aleia do jardim.Entramos num novo paradigma, na expressão de Thomas Kuhn (A estrutura das revoluções científicas, 1972), um fenômeno semelhante ao que aconteceu no Renascimento, quando surgiu a imprensa. Ultrapassamos o texto publicado mecanicamente, unidimensional, para o texto digital, com hiperlinks e até com realidade virtual. Ele traz consigo profundos desafios, caos, desinformação, mentiras, dúvidas e ideologias escusas e ditatoriais. O movimento pós-moderno, que, na teoria, teve o propósito de desmascarar falsas crenças, preconceitos e pressupostos da elite, desconstruindo tais narrativas, trouxe, na prática atual, desinformação e mentiras.Segundo Jean-Marie Schaeffer, em “Fictional vs. Factual Narration”,“[…] é difícil distinguir ficção inventiva (contra os fatos) da história que vai contra os fatos. (...) Por exemplo, a sentença “Napoleão perdeu a batalha de Waterloo” parece expressar uma verdade bastante simples. Mas será que seu conteúdo se altera, se o lermos num romance histórico, ou numa biografia, digamos, de Chateaubriand ou Stendhal? Ela perde seu valor de verdade quando é integrada num romance? [...] Quando o nome próprio “Napoleão” é usado num romance, ele não se refere ao Napoleão real, mas a algum duplo ficcional (ver Ryan, 1991; Ronen, 1994). Entretanto, essa afirmação parece contradizer nossa intuição, pois, num romance histórico, é importante, para o leitor, que os nomes próprios referentes a pessoas históricas realmente se refiram às pessoas históricas que ele conhece fora da ficção, e não a algum duplo ficcional dessas pessoas reais, afirma Searle ([1975] 1979). Ficções contrárias aos fatos provocam um problema análogo: parecem contradizer nossa intuição de que, numa autobiografia (autoficção), por exemplo, os nomes próprios podem perder sua força referencial, já que o principal objetivo da autoficção (autobiografia, memória) é justamente aplicar aquelas afirmações ficcionais a uma pessoa real (o próprio autor)”.[3]ConclusãoTodos que lidam com literatura contemporânea imediatamente percebem que o objetivo do romance atual é justamente contradizer qualquer categorização rígida, e romper a fronteira entre realidade e ficção, misturando os dois, como nos autores pós-modernos citados acima, Paul Auster, John Barth e Sérgio Sant’Anna.Mas não é igualmente este o objetivo, nessa era da hibridização, das notícias falsamente informativas, mentirosas, simulacros de informações factuais, ou teorias negacionistas da ciência, como a da Terra plana ou receitas miraculosas? Tais notícias, supostamente jornalísticas e falsamente informativas, de uma imprensa que antes era considerada “fidedigna”, agora introduzem a dúvida, o caos, a criatividade, a mentira, como se tudo derivasse do mundo subjetivo e não dependesse do real. Por um lado, elas querem ganhar dinheiro e ludibriar pessoas ingênuas, que passam a se subordinar a uma relação de poder com esses arautos do mal, por outro, isso prova que o jornalismo não é mais parâmetro de verdade, pois não existe uma única verdade. Há, sem dúvida, governantes que querem espalhar o caos, a ignorância, a noção de “quanto pior, melhor”, muitas vezes sob a capa da democracia, para imporem seus projetos ditatoriais. Do ponto de vista ético, a sociedade parece inclinar-se para a destruição de valores, pois colocou em dúvida os suportes filosóficos, a fé religiosa e a própria ideia de ética e verdade. De fato, não há mais certeza nem de verdade, nem de real, só há o real virtual, a hipótese, a conjectura. Os parâmetros de verdade do passado, que sustentavam o pensamento da sociedade greco-judaico-cristã-ocidental, em grande parte se esboroaram.Hoje, o mais importante para entendermos a discussão sobre a dicotomia entre verdade documental e imaginário ficcional é perceber que o pós-moderno aboliu as dicotomias e as separações de gênero. Não há mais parâmetro metafísico, quer de uma verdade, quer de um ser superior, quer de uma hierarquia fixa ou um cânone já dado, sequer uma verdade universal. O pós-moderno vê além das dicotomias, dos contrários absolutos, do certo, ou errado. Mas o preço que pagamos por essa liberdade é, muitas vezes, o sofisma, a falsificação do discurso e a descrença no real, confundido com o virtual. Junto com a recusa do verdadeiro, da arte do belo e do bem da Estética de Hegel, cai-se no grotesco e recusa-se qualquer harmonia na arte. Ela se torna dissonante, revoltada. Tais conceitos transcendentais têm de ser contestados, porque eram ditados apenas pelas elites. Mas, sem eles, a sociedade encontra-se perdida, sem critérios para distinguir veracidade e virtual, imaginação e factual? A arte passa a ser vista como documento, e o documento invade o campo da arte e da literatura.[1] O presente texto foi apresentado sob forma digital, como conferência de abertura da 3ª FLIM, a Feira Literária de Itapecuru-Mirim, no dia 9 de dezembro de 2020, às 18 horas. Pode ser assistido, também, no site da Feira do you tube. Agradeço ao Prof. Inaldo Lisboa pelo convite para proferir essa conferência de abertura na 3ª FLIM, Feira Literária de Itapecuru-Mirim, de 9 a 12 de dezembro, no dia 9, às 18 horas. À Profa. Laura Tinoco, por participar comigo no debate, assim como à equipe técnica que cuidou da gravação, em especial o Samir, do Instituto Federal Maranhão, e a todas as instituições que colaboraram na promoção desse evento, em plena pandemia de 2020.[2] Minha tradução.[3] Idem. Verbete criado em 19 de ag. 2012 e revisto em 20 set. 2013. Minha tradução.

Referências

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Benjamin, Walter. A obra de arte na época da sua reprodução técnica. São Paulo, Ática, 1981.

Elias, Norbert. O processo civilizador 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro, Zahar, 1990.

Jakobson, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1973.

Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1997. Kindle, 2017.

Kristeva, Julia. Sémèiotiké. Recherches pour une Sémanalyse. Paris, Seuil, 1981.

Lobo, Luiza. Segredos públicos. Os blogs de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 2007.

Lispector, Clarice. “A descoberta do mundo”. In: Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1984.

Lobo, Luiza. Teorias poéticas do Romantismo. [Tradução dos principais prefácios de teoria poética pelos próprios autores.] Porto Alegre, Mercado Aberto; Rio de Janeiro, UFRJ, 1973. (Novas Perspectivas, 20).

Lúkacs, Gyorgy. Estética. Trad. de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1982. 4 v.

Lúkacs, Gyorgy. O romance histórico. São Paulo, Boitempo, 2011.

Lúkacs, Gyorgy. A teoria do romance. São Paulo, Edições 34, 2009.

Lyotard, Jean-François. La condition postmoderne. Paris, Minuit, 1979. (Collection Critique). [A condição pós-moderna. 17a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986. Gradiva, 1989].

Saussure, Ferdinand de. Curso de Linguística geral. São Paulo, Cultrix, 1971.

Schaeffer, Jean-Marie. “Fictional vs. Factual Narration”, in The Living Handbook of Narratology, de 19/08/2012, em: http://www.lhn.uni-hamburg.de/node/56.html. Acesso em 27/10/2020.

Watt, Ian. The Rise of the Novel. Los Angeles, University of South Carolina, 1957. [A ascensão do romance. São Paulo, Companhia das Letras, 1990].

White, Hayden. Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore, the Johns Hopkins University Press, 1973. [Meta-história: a imaginação do século XIX. 2. ed. São Paulo, EDUSP, 2019].

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